23 junho 2021

Belíssima crônica do nosso conterrâneo Edmílson Caminha sobre Augusto Borges, publicada em seu livro "O professor, Beethoven e o Ladrão" (Brasília: Thesaurus, 2016)


AUGUSTO BORGES: MICROFONE, CÂMERA, PAIXÃO!

Edmílson Caminha

A infância da minha geração foi profundamente marcada, em Fortaleza, pela TV Ceará canal 2, a primeira emissora da cidade. Uma cartela fixa, cheia de linhas e números, permanecia no ar até que se fizessem os ajustes de imagem, quando a programação começava com o indiozinho‒mascote, rechonchudo e simpático. Assistíamos a todos os seriados: “O Rebelde”, “A marca do Zorro”, “Bonanza”, “Lassie”, “Bat Masterson”, “Rin-tin-tin”, “Os Irmãos Maverick”...  Por último ao “Vídeo Alegre”, produção local com um jovem humorista cujo nome só os conterrâneos sabiam: Renato Aragão. Exatamente às 8 horas, o indiozinho voltava para dizer “Boa noite, garotada!”, e todos nos recolhíamos à cama, reconheço que forçados, proibidos de ver os programas de adulto. Hoje, são as crianças que põem para correr os pais...

Adolescentes, não perdíamos “Além da Imaginação”, “Peter Gunn”, “Caravana”, “Rota 66”, “O Agente da Uncle”, “Mister Lucky”, “Hong Kong”, “O Homem do Rifle”, “Na Corda Bamba”, “Cidade Nua”, “Quinta Dimensão” e, o melhor de todos, “Os Intocáveis”, que ainda surpreende pela verossimilhança dos efeitos especiais. Já revi não sei quantas vezes Robert Stack como Eliot Ness, na coleção completa em DVD. 

A esse passado me leva de volta o livro Então eu conto (Fortaleza, 2013), com que Augusto Borges lembra essa época para evitar que se perca a memória do rádio e da televisão cearenses. Ninguém melhor para fazê-lo do que o autor, testemunha e protagonista dos acontecimentos narrados: locutor, produtor, ator, publicitário e escritor, Augusto é parte da história da imprensa no Ceará, decano do nosso rádio, que em 2019 chegará aos 70 anos de atividade contínua frente às câmeras e microfones, na plenitude da lucidez, do dinamismo e da criação profissional. Com uma particularidade talvez única, entre todos os colegas brasileiros: tem, na carteira de trabalho, apenas uma assinatura ‒ de Eduardo Campos, superintendente dos Diários e Emissoras Associados no Ceará, o primeiro e último patrão de quem foi empregado na vida.

Por coincidência, Augusto e eu tivemos quatro irmãos homens, somos ex-alunos do Ginásio 7 de Setembro... e andávamos de Prefect, o dele provavelmente tão antigo quanto o do meu pai, modelo Ford que, 50 anos depois, vi rodar pelas ruas de Montevidéu. Nele, o jovem apresentador de programas da Ceará Rádio Clube ia à noite para os cabarés do centro de Fortaleza, onde, na chamada “hora do pobre”, as profissionais faziam tudo “por amor”, já se sentiam pagas pela preferência do artista...

Aos 18 anos, Augusto Borges falava como se fosse velho, ao interpretar o alemão Hermann na radionovela “O homem da Casa Vermelha”. Dois ouvintes o convenceram a ir à casa de uma fã ardente, a avó que comemorava 85 anos:

― Vovó, nós temos um presente de aniversário pra lhe dar... Veja só quem está aqui: Augusto Borges!

A velha olhou e não se deu por enganada:

― Vocês querem me dizer que esse menino é o Augusto Borges?! Nunca! Ele é velho, conheço a voz dele, eu escuto a novela todo dia!

― Mas vovó... é ele mesmo, o Augusto Borges, nós o trouxemos pra lhe fazer uma surpresa!

― Vocês pensam que eu sou besta? Só acredito se ele vier aqui e falar no meu ouvido, como o alemão...

Foi o jeito. O ator, muito sem graça, começou a lhe dizer uma fala de Hermann.

― Pois não é que é o Augusto mesmo?! Nunca pensei que fosse tão novo, com aquela voz de velho... Venha de lá um abraço!

Em 1960, Assis Chateaubriand inaugura a TV Ceará canal 2, e qual a primeira imagem que se vê...? A do mestre de cerimônias, Augusto Borges. Época de ouro da televisão cearense, com autores, produtores, diretores, apresentadores, artistas e técnicos que se igualavam aos melhores do Brasil: Eduardo Campos, Guilherme Neto, João Ramos, Hiramisa e Haroldo Serra, B. de Paiva, Aderson Braz, Narcélio Limaverde, Wilson Machado, Maria Luíza e Rinauro Moreira, Emiliano Queiroz, Marcus Miranda, Gonzaga Vasconcelos, Ary Sherlock, Irapuan Lima, Antônio Mendes, Neide Maia... e Augusto Borges, que fala bem de todos, elogia-os, reconhece-lhes o talento, prova da grandeza humana, do bom caráter e da generosidade que o enobrecem como pessoa e o distinguem como profissional. Diferentemente de tantos, Augusto não se compraz em maldizer, mas em louvar os colegas, como Antônio Normando, pai do meu amigo Célio, responsável pela engenharia, e William Ferreira Dantas, o Irmão, operador de uma das duas câmeras da emissora. Na transmissão de um jogo, ao vê-la despencar do piso superior do estádio Presidente Vargas, abraçou-a e caiu junto, com o que evitou que se destruísse metade do equipamento da empresa...

Com tão pouco, impressionam os clássicos da literatura exibidos pela TV Ceará: “Carmen”, de Prosper Mérimée; “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen; “O Fantasma de Canterville”, de Oscar Wilde; “A Tempestade”, de William Shakespeare e até, de Herman Melville, “Moby Dick”! Em 1967, a adaptação da peça “Os Deserdados”, de Eduardo Campos, conquista o terceiro lugar no Festival Internacional de TV de Barcelona, em disputa com representantes de vários países.

Nos Estados Unidos, para conhecer emissoras de televisão educativa, Augusto Borges não se conteve quando o reitor de uma universidade quis saber, do grupo de cearenses, o que eles faziam ali:

― Nós viemos aprender o que os senhores fazem com 20, 30, 40 câmeras, e ensinar o que fazemos com duas...

Em 1980, o governo militar lacrou os transmissores da TV Ceará, que em 20 anos escrevera algumas das mais belas páginas da televisão brasileira. A imagem com que deixou de existir foi, muito significativamente, a do homem que a pusera no ar em 1960, agora à frente dos companheiros em várias horas de transmissão ininterrupta, para honrar o que dissera o fundador Chateaubriand: “Aqui tudo é bem feito, e feito com amor.”

Augusto Borges não se dá a importância que tem como um dos protagonistas da história do rádio e da televisão no Brasil, e encerra o seu Então eu conto com a singeleza e a humildade que só vemos nos espíritos verdadeiramente grandes:

Não passei em branco pela vida. Deixo para meus filhos e netos a certeza de que tenho sido um profissional responsável, que nunca usou de seus instrumentos de trabalho para ofender a quem quer que seja. Faço comunicação pela comunicação. Nunca forjei uma notícia, mas nunca escondi uma informação. Outros interesses não me moveram e, ainda, não me movem, a não ser aqueles que são éticos, e absolutamente profissionais. O microfone e as câmeras não me enriqueceram, mas me deram oportunidades e me abriram as portas para conhecer pessoas, empresários, e torná-los grandes amigos.

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